David da Silva
Neste mês de maio, fez 73 anos da primeira vez que civis brasileiros foram mortos pela aviação militar de seu próprio país.
O massacre ocorreu no dia 11 de maio de 1937 na região do Crato, no sul do Ceará. As vítimas: camponeses da comunidade Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Ali morreram 700 pessoas. Nenhum soldado morreu.
A ordem para abrir fogo das metralhadoras dos aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) contra os lavradores partiu do general Eurico Gaspar Dutra, então ministro da Guerra do governo Getulio Vargas.
A comunidade agrícola-religiosa era liderada pelo beato José Lourenço. Paraibano, José Lourenço decidiu mudar-se para Juazeiro do Norte (CE). Lá conheceu Padre Cícero, e caiu nas graças dele. Logo o beato arrendou um lote de terra, onde se instalou com alguns romeiros. A produção de frutas e cereais cresceu rápido. Os plantadores dividiam tudo entre si, em partes iguais.
Cova coletiva dos massacrados no Caldeirão - Ceará |
A cada melhora na comunidade de José Lourenço, crescia a ira dos políticos e fazendeiros da região. Em 1921, conseguiram prendê-lo, acusando-o de fanatismo e adoração de animal como objeto de culto religioso. O bicho não passava de um boi, chamado Mansinho, dado de presente por Delmiro Gouveia ao Padre Cícero, que o deixou aos cuidados do beato. Os donos das terras acusaram o beato de atribuir poderes milagrosos às fezes e urina do boi. Mataram o animal e forçaram Jose Lourenço a comer sua carne.
As humilhações e maus tratos sofridos na prisão aumentaram a devoção do povo com o beato.
“Tudo era de todos”
Em 1926, José Lourenço mudou sua comunidade para a Fazenda Caldeirão dos Jesuítas, pois a antiga terra que ocupava fora vendida. Foi na fazenda Caldeirão que o beato fundou sua Irmandade de Santa Cruz do Deserto. De novo, o trabalho agrícola prosperou logo. Além de alimentar toda a comunidade, sobrava para abastecer toda a região do Crato e Juazeiro. Tanto os produtos colhidos quanto o lucro obtido com a venda dos excedentes, eram divididos em partes iguais. Apesar de analfabeto, Jose Lourenço tinha talento para dividir tarefas e ensinar medicina caseira.
Em 1932, o Governo do Ceará criou campos de concentração para os flagelados da seca. A intenção era manter os famintos e sedentos longe de Fortaleza, capital do Estado. Nestes lugares, severamente sob os fuzis das sentinelas, morria gente feito moscas. Quem conseguia fugir, ia para o Caldeirão. Ali, a fartura nunca acabava, graças ao sistema ecológico do plantio e técnicas de conservação de água, com construção de microbarragens.
A Irmandade de Santa Cruz do Deserto crescia, e a ira dos latifundiários, também.
Com a morte de Padre Cícero em 1934, José Lourenço perdeu seu grande aliado e defensor. Era a chance que os poderosos esperavam há anos...
Começaram a comparar o Caldeirão a Canudos, e a dizer que Jose Lourenço adotara o regime comunista com seus romeiros.
Em 9 de setembro de 1936, um batalhão da Polícia do Ceará expulsou o povo do Caldeirão e queimou suas 400 casas. Os sobreviventes fugiram para o mato, onde se reagruparam.
Ao invés de bênçãos, balas caíram do céu
No ano seguinte, um incidente serviu como sentença de morte para a comunidade do Caldeirão. Um capitão da polícia militar e quatro soldados morreram em uma escaramuça com membros de uma facção da Irmandade.
Dias depois vinha a ordem do Governo Federal para o massacre final. O general Dutra liberou 200 soldados por terra, e três aparelhos de guerra do Destacamento de Aviação. As metralhadoras da FAB despejaram chumbo quente sobre os colonos indefesos.
José Lourenço refugiou-se em Exu, no Pernambuco, onde morreu em 1946 de peste bubônica. O povo carregou seu caixão por 70 quilômetros a pé, até Juazeiro. Os padres negaram-se a celebrar seu funeral. Os fiéis seguidores então o enterraram no Cemitério do Socorro.
Pacto de silêncio
“Foi uma coisa tão triste, que minha memória esqueceu”. Assim disse o lavrador aposentado João Batista de Morais ao repórter Paulo Mota, da Folha do Ceará, em entrevista realizada em fevereiro de 1998. “Já sofri muito, meu filho”, emendou a também aposentada Alexandrina Tavares de Líria, com 81 anos quando a reportagem foi publicada. “O que posso dizer é que Caldeirão foi um sonho que passou e nada mais”.
Até hoje este episódio sangrento não é incluído nas aulas de História do Brasil.
Em 1986, o cineasta Rosenberg Cariry lançou o documentário longa-metragem Caldeirão de Santa Cruz do Deserto.
Em setembro de 2008, a organização não governamental SOS Direitos Humanos entrou com ação contra o Governo Federal e do Ceará, exigindo que o Exército indique o local exato da vala comum onde foram jogados os corpos das 700 vítimas do genocídio brasileiro. Exige ainda a exumação e identificação delas por DNA, enterro digno, e R$ 500 mil de indenização para seus familiares.
Se você conhece algum descendente de pessoas que viveram essa trágica passagem, faça contato com o advogado Otoniel Ajala Dourado, diretor da SOS Direitos Humanos e membro da comissão de Defesa e Assistência, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE).
(85) 8719.8794 e 8613.1197
e-mail drajala@ig.com.br ou acedesfe@ig.com.br
2 comentários:
Isso é monstruoso!
E absurdamente mal divulgado.
Quantas outras coisas assombrosas,estão ocultas em.poroes de silencios
Isso.parece-me o HOLOCAUSTO HITLERANO em.pleno Brasil...
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