terça-feira, 4 de maio de 2010

Louvação para um boteco fecha-nunca

Bar Fecha-Nunca, bairro Campo Limpo, zona sul de Foto: David da Silva - 03.mar.2010

“A entrada é de um bar comum. Como os outros.
Mas este é um fecha-nunca, 
olho aceso dia e noite, noite e dia.” *

Largo do Campo Limpo, zona sul da capital São Paulo/SP. Ali, boêmio que se preza não dispensa a penúltima no fecha-nunca: “Vâmo lá tomar a caideira no Bar do Beto!”.
Mas o Beto não é o dono do boteco.
Outro arrisca um palpite: “O Beto é encarregado do período da noite”.
Também não é.
Deixa quieto. Como diziam os latinos antigos: Vox Populi Vox Dei (a voz do povo é a voz de Deus). A própria Polícia acha que o bar é do Beto. Quando um sujeito foi abatido a tiros na calçada defronte ao estabelecimento, quem foi no Deic prestar depoimento? O Beto.
Até os ladrões pensavam que o Beto era dono do boteco. Certa noite, tô eu com uns chegados beiçando loiras na ponta do balcão, quando de repente: “TUKK!”. O larápio socou a coronhada na cabeça de quem? Do Beto...
Toda esta certeza equivocada vem do fato do Beto ser o veterano do pedaço. Em março último, fez 10 anos que ele foi pra trás do balcão do bar e restaurante do número 177 da avenida Carlos Lacerda (à direita Beto na foto antes da reforma do bar).
Beto se mandou lá da sua Paraíba aqui para São Paulo com 17 a 18 anos de idade. Foi trabalhar em fábrica de plásticos, e logo depois entrou para a vida de funcionário de boteco. Era no Bar do Costinha, na rua da Consolação. Mas lá ele não encarava a frente de batalha do balcão. O trampo era nos bastidores, na cozinha.
O dono de uma banca de jornal no Campo Limpo apresentou Beto para Edílson, dono do dito cujo fecha-nunca onde está até hoje.
Boteco fecha-nunca é como definiu o escritor João Antonio: lugar de rumor e movimento. Que ferve, dia e noite sem parar.
Ali se mistura malandro junto com trabalhador, advogado, gente pedindo esmola, taxista, operário, dentistas, comerciantes, ladrões de carteira, estudantes, meretrizes, cobradores de lotação, invertidos, peões da construção civil.
Por volta das 10h da noite, crentes passam apressados rumo às suas casas, as bíblias apertadas contra os corpos que logo-logo vão se por de pé para nova labuta. Vem um rapaz de bicicleta vender CDs piratas e DVDs de putaria. E a mocinha que vende flores artificiais.
A madrugada segue veloz, e as bebidas não cessam suas viagens das garrafas para os copos. Quando a galera dá uma folga, Beto estica as canelas até a calçada, talvez pensando na esposa Bia, no filho Caio, na Danielle...
Fecha-nunca que se dá ao respeito, calça o peito da distinta freguesia com um bom rango quentinho no meio da madrugada. Trabalhadores e trabalhadoras da noite levam seus marmitex; outros forram o estômago no boteco mesmo.
Onde tem gente comendo, tem vira-lata por perto. No fecha-nunca do Largo do Campo Limpo o freguês de quatro patas mais famoso é um cãozinho branco com manchas cinza-amarronzadas. É um vira-lata muito educado. Espera pacientemente ao lado das mesas espetando os clientes com olhinhos pidões, e só vira cestinhos de lixo se dentro tiver comida que valha a pena. Na foto ao lado o vira-lata se atraca com um osso de costela de boi gentilmente oferecido pelo vendedor de frutas Ricardo, o Kaká - leia sobre o Kaká
aqui
O cachorro foi batizado como Raul. Quem deu este nome a ele foi Valdir (foto à esquerda), o maior vira-lata de duas pernas - na verdade, o boêmio mais querido de toda a região do Campo Limpo - que vara as noites neste fecha-nunca. A história dele eu já contei aqui.

* A frase da epígrafe dessa crônica é do escritor João Antônio no livro Malhação do Judas Carioca

Um comentário:

Anônimo disse...

David, você sabe muito bem que sou antigo admirador de sua "escrita".
Por vezes, quando converso com colegas de copo e de cruz, não sinto o menor constrangimento em afirmar que você é um dos melhores jornalista que conheci. De uma perspicácia inigualável sabe como ninguém compor frases hilárias com pitadas de ironia.
Mas o que não gosto em você e vou criticar agora, é que deveria acordar escrevendo e só parar quando estiver na hora de ir ao boteco. Ah, e quando lá chegar, sei que a criatividade rondará sua mente esboçando todo o conteúdo para o próximo dia.
Hamilton Rossiter