quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A ligação entre Taboão da Serra e o filme concorrente ao Oscar/2016

Edna da Silva, inspiradora do filme
Longa-metragem Que Horas Ela Volta? terá duas apresentações na próxima 3ª-feira no Sesc Campo Limpo

Nenhuma cena do filme Que Horas Ela Volta? foi gravada em Taboão da Serra.
Mas é nesta cidade, no bairro Jardim Sílvio Sampaio, onde mora Zeni Maria de Jesus, 67 anos, em quem foi baseada a personagem Val, interpretada por Regina Casé. Dirigido por Anna Muylaert, o longa-metragem representa o Brasil na disputa por uma vaga ao Oscar 2016.
Se no cinema a dona Zeni é a Val, na vida real a personagem Jéssica é Edna da Silva, 47 anos, filha de dona Zeni.
Sucesso de público, Que Horas Ela Volta? já encostou no meio milhão de espectadores. Até a manhã de ontem, 5ª-feira, o filme havia sido assistido por 498.653 pessoas.
Na próxima 3ª-feira dia 24, o filme será exibido em dois horários no SESC Campo Limpo. 
É a segunda presença deste filme na região. No último 4 de novembro, a diretora Anna Muylaert veio ao bairro Campo Limpo exibir o filme e debater com integrantes da ONG Escola de Notícias, no CITA (Centro Integrado de Todas as Artes).
A inspiração para o filme veio da experiência de vida de Edna da Silva. 
Anna Muylaert (a 2ª agachada da esq. p/ a dir.) em
debate sobre o filme no Campo Limpo, dia 4/11.
“Eu trabalhei muitos anos na casa da Anna [diretora do filme]. Fui babá dos filhos dela”, explica Edna. “Eu contava minhas coisas pra Anna, e ela ficava indignada de eu ter sido arrancada quando ainda era um bebê de perto da minha mãe. Fiquei sem ver minha mãe até meus 17 anos; meu pai me proibia de procurá-la, pois tinha raiva por ela ter se separado dele. A Anna sempre me dizia: ‘Um dia vou fazer um filme contando a tua história’”.

“Vem me buscar, mãe”

Na manhã de uma 2ª-feira em julho de 1985, o telefone toca na casa de número 84 da Rua Samuel Wainer, Jardim Silvio Sampaio, Taboão da Serra. Do outro lado da linha, de um telefone público em Salvador, capital da Bahia, o choro de uma menina desesperada de saudades: “Mãe, vem me buscar; quero ir morar com a senhora”.
Regina Casé faz a personagem Val,
inspirada em dona Zeni, moradora
de Taboão da Serra
Edna tinha um ano de idade quando seus pais se separaram. “Minha mãe veio para São Paulo trabalhar de doméstica, na intenção de voltar e me levar com ela quando se estabilizasse no emprego”, conta. Edna ficou aos cuidados da avó Conceição, mãe de seu pai, já falecida.
O pai, o mascate Arlindo José da Silva, falecido há 15 anos, nunca permitia o contato de mãe e filha. “Era a vingança dele, por conta de ter sido largado por ela. Cresci dizendo a mim mesma: ‘Quando eu ficar maior de idade, vou embora pra junto de minha mãe’. Eu sempre olhava para os retratos dela, sonhando com ela. Quando ela me mandava presentes, por várias vezes meu pai bloqueava. Aconteceu de minha mãe me mandar um brinco, ele pegar primeiro e esconder. Uma coisa de louco”.
Durante toda a adolescência, a garota não pôde sequer ter seus documentos pessoais. “Meu pai escondia minha certidão de nascimento pra eu não tirar RG e carteira de trabalho. Era o jeito dele me manter presa naquela cidade, em Vitória da Conquista sem poder vir para São Paulo atrás da minha mãe”.

Criança cuidando de crianças

Aos 11 anos Edna arranjou emprego de babá.”A gente morava num sítio, longe. Então fui para a cidade trabalhar. Foi meu primeiro ganha-pão. Queria juntar dinheiro para morar com minha mãe. Com aquela idade de 11 anos eu cuidava de três crianças. Não sei quem tomava conta de quem (risos) – a Juliana tinha 7 anos, Pedrinho com 4 anos, e Geórgenes, com um aninho. Trabalhei naquela casa por dois anos e pouco”.
Aos 14-15 anos, Edna teve proposta para trabalhar na capital. “Em Vitória da Conquista, minha tia trabalhava na casa de uma família, onde havia três jovens na faixa dos 14 aos 18 anos que estavam indo estudar em Salvador. A patroa da minha tia precisava de uma pessoa para fazer serviços de casa, cozinhar, lavar roupa, limpar a casa dos três filhos lá na capital. Eu escutei a conversa e me interessei. Pensei: ‘Ôpa! Em Salvador já estou mais próxima de São Paulo, mais perto da minha mãe!’. Minha tia não concordou, porque eu era menor de idade, não tinha nenhum documento, e ela não podia assumir a responsabilidade. Mas eu fiz tanto a cabeça dela, que ela chamou meu pai pra conversar. Sei lá o que meu pai imaginou. Talvez ele tenha pensado que eu indo para Salvador, fosse esquecer o desejo de procurar minha mãe. Mesmo assim, ele não deu a certidão de nascimento na minha mão. Entregou para a minha patroa e ainda recomendou: ‘Não deixa a Edna pegar esse documento de jeito nenhum!’”.

Edna só conheceu a mãe aos 17 anos
Conexão mãe-filha

Em Salvador, por intermédio de parentes, Edna conseguiu o endereço da mãe em Taboão da Serra. Começaram a trocar cartas.
Mas a saudade não cabia nos envelopes do Correio. “A vontade de ver minha mãe era cada vez maior. Daí descobri que ela tinha colocado telefone em casa. Consegui o número com minhas primas”.
A saudade transbordou.
“Saí para a rua, desesperada, segurando na mão o pedaço de papel com o número do telefone. Comprei muitas fichas telefônicas. Nossa, não gosto de me lembrar dessa parte... Muito triste.
Tava me sentindo sozinha num mundão desconhecido, horrível”, narra Edna, e prossegue:
“Grudei no telefone: ‘Mãe. Estou de malas prontas. Vem me buscar agora’.  Lembro que eu chorava muito. Minha mãe também chorava muito.  Ela falou: ‘Calma, calma. Fica tranquila que eu vou te buscar’. Voltei no trabalho, arrumei minhas coisas, não recebi salário, não recebi nada. Só falei pro pessoal da casa: ‘Estou indo embora’. E todo mundo: ‘Mas você não pode. Você é menor de idade. Nem tem documentos!’. Mas eu insisti em ir embora. Eu estava tão louca...”
No final do dia seguinte, uma das filhas da patroa levou Edna à rodoviária. A garota já tinha traçado seu plano de fuga:
“Como eu não conhecia nada em Salvador, resolvi ir para a rodoviária de Vitória da Conquista, que eu já conhecia. E lá eu encontraria minha mãe, que no mesmo dia em que eu liguei, saiu de São Paulo para se encontrar comigo.  Ajustamos os tempos de viagem de cada uma, para dar certo o encontro na rodoviária”.
Edna saiu de Salvador às 22h da 3ª-feira. Sua mãe havia partido de São Paulo às 11h do mesmo dia, com previsão de chegar a Vitória da Conquista às 11h do dia seguinte.
“Cheguei em Vitória da Conquista bem cedo. Não me lembro a hora. Mas fiquei plantada na estação até minha mãe chegar. Quando nos encontramos, foi muito emocionante. Reconheci minha mãe pelas fotos que eu tinha dela”, relembra.
Para se refazer da maratona da viagem e das emoções, dona Zeni propôs à filha descansarem até o dia seguinte. “Me desesperei: ‘Quero ir embora agora! Quero ir embora agora mesmo!’”.
Certamente a menina tinha medo que seu pai descobrisse o encontro das duas. E botasse a perder um projeto acalentado por 16 anos longe dos carinhos da mãe. “Viemos para São Paulo naquela mesma hora. Foi só o tempo de o carro com que minha mãe tinha ido para a Bahia ir na garagem fazer a limpeza, e voltamos no mesmo ônibus”.

A vida na tela

Por pouco tempo Edna ficou na casa da mãe em Taboão da Serra. Dona Zeni havia se casado de novo, três filhos com o segundo marido. “Vieram os atritos com meus irmãos. Rolou muitos ciúmes, eles não me aceitavam”.
O primeiro emprego de Edna em São Paulo foi de copeira na casa do fotógrafo Thomaz Farkas, dono da rede de lojas Fotoptica.
Mesmo na função de copeira por mais de três anos, o DNA de babá falava mais alto na vida de Edna. “Quando iam crianças na casa do seu Thomaz, eu esquecia que era copeira. Fazia muita confusão. Me envolvia com as crianças. Um dia ele me disse: ‘Ô, meu bem. Você não acha que está na profissão errada? Você adora crianças. Tem de ser babá’”.
Edna seguiu o conselho do patrão, empregou-se na casa de outra família como babá por quatro anos e meio. Até que descobriu que o serviço de diarista rendia mais. E foi trabalhar na casa de Anna Muylaert, que já conhecia por ser frequentadora da família Farkas.
 “Na Anna foi muito engraçado”, Edna se diverte com a lembrança. “Outra história bacana. Ela me contratou como diarista. Só que eu não limpava nada (risos). Brincava o dia inteiro com o José, filho dela na época com um ano e dois meses de vida. Um dia a Anna me chamou para conversar. Pensei: ‘Êita, vai me mandar embora...’  Ela me disse já que eu não estava limpando nada na casa, se eu queria cuidar do José. ‘Você não limpa nada aqui. Fica o tempo todo brincando!’. (risos) Mas eu ganhava muita grana como diarista. Tinha clientes para todos os dias da semana; trabalhava até aos sábados. Se ficasse como empregada mensalista, perderia dinheiro. A Anna resolveu me pagar salário mensal igual ao valor que eu ganhava como diarista. Depois do José, nasceu o Joaquim, e trabalhei na casa da Anna por 5 anos, de 1990 a 1994”.
Diretora de fotografia Barbara Alvarez
durante filmagens do longa em Embu das Artes
Por todo este período Anna dizia para Edna: “Um dia eu vou escrever a tua história”.

Pelo mundo afora, Que Horas Ela Volta? leva o título de The Second Mother.
Edna ainda trabalha como “segunda mãe” em casa de família. Mas fez curso de cabeleireira e breve vai montar seu salão no Jardim Nossa Senhora de Fátima, Embu das Artes, onde mora desde o início da década de 1990.
Sua casa e seu bairro foram o cenário para as ações gravadas na periferia.

Serviço:
Dia 24 de novembro (3ª-feira)
Às 18h e às 20h
Exibição do filme
QUE HORAS ELA VOLTA?
(114 minutos)
Entrada grátis
SESC Campo Limpo
Rua Nossa Senhora do Bom Conselho, 120
Ao lado da Estação Metrô Campo Limpo e do Shopping Campo Limpo

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2 comentários:

Anônimo disse...

David, adorei descobrir isso, grato pela publicação.

Edna disse...

Não me canso de lê esse seu texto, e ainda me emocione com ele.....